Paraty, 26 de abril de 2020
Pode parecer estranho imaginar as margens do Perequê-Açu vazias, o centro histórico silencioso… Vi numa remota imagem de drone. Não é só agora, tempo de quarentena e confinamento. Devemos nos preparar para mudanças mais duradouras em nossa cidade. O turismo internacional vai diminuir, apesar do dólar nas alturas. Os brasileiros estarão com pouco dinheiro para viajar. As aglomerações, mesmo quando não forem mais proibidas, vão continuar não sendo recomendadas. Mesmo com a retomada de eventos e atividades, passaremos por momentos de pouco afluxo de pessoas. Não vamos voltar ao “normal”, e precisamos pensar o que fazer.
É claro que cada um já deve estar pensando, fazendo seus cálculos, se preparando para o pior, para o menos pior ou para algo diferente. Mas não é só o que cada um vai fazer para resolver, é como a gente vai encarar isso coletivamente. O que vai significar Paraty para a gente e para os que nos veem de fora? Muitos falam que o mundo vai mudar. Mas para nós, aqui é nosso mundo, do tamanho de nosso horizonte cotidiano, nosso espaço comum. Esse pequeno mundo pode ter vários tamanhos, a nossa família, a nossa casa, o nosso bairro, a nossa rua, a nossa comunidade – real ou futura, pois dificilmente conseguiremos deixar de pensar cada lugar a partir de agora como uma comunidade. Mas existe um mundo que se chama Paraty. E quando olharem para nós, em breve, vão nos perguntar: e Paraty, o que fez?
Para começar, seria importante encontrarmos uma história comum sobre o que estamos passando. Que história você gostaria de compartilhar com seus filhos e suas filhas, seus companheiros e companheiras, sua mãe, seu pai, seus avós? Um momento em que uma cidade parou e começou a se pensar novamente, o que ia fazer diante de tantas incertezas, ou uma cidade que continuou num fluxo como se nada tivesse acontecido, como se nada pudesse parar?
Na FLIP de 2016 esteve por aqui a escritora bielorrussa Svetlana Aleksievitch, que escreveu um livro com histórias contadas pelas pessoas que sobreviveram ao acidente de Chernóbyl. Lembro de sua palestra, quando ela dizia: sem saber as consequências do que estava acontecendo, as pessoas saíam de casa normalmente. Quando tenho que ir ao mercado na cidade nesses dias, sempre lembro dessa fala, pois vejo muita gente que acha que está tudo normal e tudo deve voltar o mais breve possível. A diferença é que a informação já está aí para todos, mas muita gente tem se negado a aceitar, é um autoengano. Talvez por influência dos maus exemplos que vêm de cima, talvez por ainda não terem processado a mudança em suas cabeças.
A despeito de pessoas que tentam negar para os outros (de forma má intencionada ou não) ou para si mesma (numa autoilusão, por não querer acreditar), a verdade é que o vírus, por onde passa, está confirmando o desastre anunciado: cidades grandes em todo o Brasil já estão com o sistema de saúde entrando em colapso.
Svetlana ouviu muitas histórias, de pessoas que muito tempo depois do ocorrido ainda sentiam necessidade de contar o que passou. Não eram histórias de grandes personagens, mas da gente comum, que buscou reconstituir suas vidas num mundo que mudou por completo após um acontecimento sobre o qual não tiveram qualquer responsabilidade. A diferença é que agora todos nós somos responsáveis, e nossa capacidade de contar alguma história sobre o que fizemos e vivemos neste 2020 dependerá de nossa conduta, nosso cuidado.
Não é uma discussão sobre quem provou estar certo ou não. A questão é saber que princípio conduziu nossos atos e preocupações neste momento. O que nós aprendemos ao pensar para além de nossas vontades e necessidades individuais? Que mundo seremos capazes de reconstruir? E reconstruir, lá na frente, pode começar com termos uma história comum para contar, composta pela verdade das informações que nos chegam e pela realidade que conseguimos compartilhar entre nós.
Pode ser que muitos estejam hoje compartilhando ideias e sentimentos com pessoas que estão longe, conectadas pelos aparelhos que nos permitem ouvir e ver à distância. Mas muitas histórias que teremos para contar dizem respeito à maneira como lidamos com isso em nosso entorno imediato, como nos ajudamos, como descobrimos coisas e como aprendemos a viver novamente, com nossas vidas modificadas.
Por sorte, vivemos numa cidade muito diversa, e a diversidade é um fator muito importante para que os humanos sobrevivam e se adaptem. Assim podemos pensar essa cidade como organismo que pulsa coletivamente no “entre nós”. E por sorte também que temos aqui sabedorias profundas que certamente nos serão necessárias para saber viver nesse novo mundo.
Do alto do sertão do Taquari à beira do mar da Cajaíba, do quilombo do Campinho à aldeia Itaxim, quantos sábios e sábias que cultivam bibliotecas inteiras enraizadas no solo, que conhecem a língua dos peixes e das plantas, sabem ler o movimento das nuvens e o comportamento dos bichos. E sabem levantar do chão suas hortas, gerar alimentos e produzir artefatos tecnológicos próprios. Múltiplas formas de conexão com o divino são cultivadas aqui, em cortejos, tambores, casas de reza, ladainhas, igrejas ou templos. Quantas histórias guardam ainda para contar e nos ensinar a viver em outro mundo possível. Também na cidade, aqueles que habitaram o mangue e construíram suas próprias casas, os que chegaram há pouco tempo e falam também outras línguas, e trazem memórias de suas distâncias, sotaques, sabores e saberes. E ainda aqueles que saíram das metrópoles para viver outro tipo de vida e aqui aprenderam que a vida não é só isso que se vê, é um pouco mais…
Existem muitas Paratys e isso nos permite imaginar futuros possíveis
O título desse texto vem de uma música do Bonifrate, Lady Remédios, que fala sobre Paraty, mas que fala com Paraty. “Teu isolamento te encheu de gente”. No passado, houve também um tempo de desconexão. Certamente foi muito mais duradouro, algo perto de cem anos de solidão, entre meados do século XIX, quando ocorre a crise do sistema escravista e ascensão da economia do café no Vale do Paraíba, e meados do século XX, quando a Paraty-Cunha se abre ao afluxo dos paulistas e depois a Rio-Santos abre caminho para a chegada de um turismo mais massivo.
Nesse período de um longo isolamento, a cidade se esvaziou ou parou de crescer. Muitas fazendas de monocultura foram abandonadas. A mata atlântica no entanto, se recuperou, hoje Paraty é um dos municípios com mais áreas de floresta no estado do Rio de Janeiro. O casario antigo não foi derrubado e substituído por novas casas, faltava dinheiro para fazê-lo, e por isso temos até hoje um centro histórico. As comunidades caiçaras se formaram ao longo da costa, as comunidades de negros livres, que depois passaram a se denominar quilombos, se formaram nessa época. E nessa brecha histórica, as roças e quintais proliferaram. Já no final desse período voltaram os índios guarani, retomando uma rota ancestral rumo a terra sem males. As festas religiosas tradicionais, vivenciadas até hoje, e muitos dos costumes que hoje imaginamos existirem há muito tempo devem ter sido criados nesse período. Até um jeito local de falar português era possível encontrar em algumas das praias, contam os antigos viajantes.
O fato é que muito do que Paraty significa hoje se deve a esse momento em que o tempo parece ter ficado em suspenso. Por isso a beleza e a verdade do verso de Bonifrate, aparentemente contraditório, “teu isolamento te encheu de gente”. Pois foi justamente nesse isolamento que se mantiveram e se produziram as características que logo no período seguinte fizeram Paraty ser tão atrativa para tanta gente que veio ver.
Hoje, o isolamento guarda em sua concha futuros possíveis. Tudo o que não precisamos é viver aqui as situações calamitosas que já se apresentam em outras cidades. Primeiro porque são vidas a serem salvas, é pela gente. Segundo porque os profissionais da saúde, que são hoje os mais expostos, precisam ser preservados, para hoje e para o futuro. Dificilmente receberemos turistas numa cidade que não apresente uma infraestrutura de saúde que possa também atendê-los. Por isso também, uma imagem de negligência hoje pode ter um efeito prolongado, dificultando qualquer retomada. Defender afrouxamento a qualquer custo, em nome de uma suposta economia, pode na verdade estar a prejudicando por muito mais tempo. Diferentemente disso, podemos hoje buscar ser exemplos de solidariedade, de apoio mútuo e de soluções que possibilitem o máximo de pessoas ficar em casa.
Se o poeta me permite, retomo aqui o verso de Lady Remédios para dizer a Paraty, mas também a cada um: “teu isolamento te encherá de gente”. Não só pelo fato de vermos novamente, em breve, as ruas cheias e as pessoas de fora voltando a nos visitar, mas sobretudo porque estaremos cheios de gente, de gente viva, de humanidade. E não seremos um “eu” desprovido da gente, separado de um “nós”. Mas sim, seremos capazes de preencher nossos vazios individuais com nossas relações, nossos vínculos, nosso aprendizado comum, matéria prima das comunidades que se anunciam.
Licio Caetano do Rego Monteiro
Para ouvir e assistir o clipe “Lady Remédios”, de Bonifrate:
Para ouvir o EP Lady Remédios, de Bonifrate (2017)
https://bonifrate.bandcamp.com/album/lady-rem-dios
A imagem em destaque do texto é a da capa do EP.